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“Todos devem conhecer o teste de Rorschach, no qual o paciente é convidado a dar sentido ao que são manchas de tinta […]”.

Por Caio Mesquita

29 de maio de 2023, 09:02

Teste de Rorschach

Todos devem conhecer o teste de Rorschach, no qual o paciente é convidado a dar sentido ao que são manchas de tinta. Pode parecer exagero, mas de muitas maneiras a economia global neste momento faz tanto sentido quanto uma mancha de tinta. Tanto investidores como gestores e banqueiros centrais podem achar o que quiserem e chegar a quase qualquer conclusão, basta desviar o olhar de um lugar a outro.

Vamos começar pelos mercados, especificamente o todo importante S&P500. Até uma pequena realização nesses últimos dias, devido a temores sobre o teto da dívida americana (falo mais sobre isso logo adiante), o índice estava rodando nas máximas do ano, ao redor de 4200 pontos, uma nada desprezível alta no ano de 9%.

Tudo bem, então? Porém, considere que 99% dessa alta são devidos a somente 10 ações, todas elas ligadas ao setor de tecnologia, e ao frenesi sobre as inovações ligadas à inteligência artificial, e que no ano os índices Dow Jones, Russel 2000, e mesmo o S&P 500, ponderado igualmente (e não por capitalização), estão em queda.

Tudo mal, então? Mas o ciclo de alta de juros “pode” estar no seu fim e o índice VIX, que projeta a volatilidade esperada, estar perto das mínimas dos últimos 12 meses (apesar do drama fiscal em Washington). Normalmente, isso seria um sinal bullish já que todo um segmento da indústria, com estratégias de paridade de risco e “volatility targeting”, basicamente compra ações quando a volatilidade cai.

Como conciliar tais aparentes contradições? Vamos oferecer algumas hipóteses na conclusão. Mas, antes, como vai a economia global?

Aqui também tem de tudo. De um lado, o crescimento global tem surpreendido a todos. O JP Morgan estima que o crescimento global neste primeiro semestre vai atingir 3% anualizados. Nada mal quando o cenário base apontava para uma recessão neste ano.

Mas ainda há uma pletora de indicadores antecedentes apontando em direção a uma recessão nos EUA, entre eles: o LEI do Conference Board; o Empire Fed; o Philly Fed; o ISM/NAPM; a inclinação negativa da curva de juros; e uma generalizada queda nos preços das commodities. Na China, o crescimento anualizado no primeiro trimestre de 12% deve cair para algo como 3,5%. E a Europa, depois de surpreender todos por não ter caído em recessão com a guerra na Ucrânia, agora enfrenta sinais de desaceleração – a Alemanha, a maior economia do bloco, de fato entrou em recessão técnica, com o PIB do primeiro trimestre caindo 0,3%, com fortes quedas na produção industrial e no consumo.

Em cima dessa confusão ainda temos a surreal possibilidade de o Tesouro americano não pagar suas dívidas em alguns dias. É verdade que as negociações têm ido melhor do que muitos esperavam, e a maioria das casas estão trabalhando com uma probabilidade de 70-80% de se chegar a algum acordo definitivo ou a alguma postergação para continuar as negociações.

Um ponto relevante sobre esse imbróglio é o que pode acontecer se tivermos um “final feliz”. Com sua caixa quase vazia, algumas estimativas apontam para uma emissão líquida de títulos que pode superar US$ 1 trilhão de dólares até o final deste ano. Joga em cima disso a continuidade do “quantitative tightening” por parte do Fed, o que pode retirar mais US$ 600 bilhões de liquidez. Há disponíveis ao redor de US$ 600 bilhões estacionados no Fed em operações compromissadas que podem ser canalizadas para a compra de Treasuries. A conclusão é que as condições de liquidez vão piorar, o que no mínimo deve elevar o nível de volatilidade na curva de juros.

Outro ponto sobre o “debt ceiling” é que qualquer acordo deve implicar algum aperto fiscal adicional (foi assim em 2011). Os Republicanos gostariam de ver cortes de despesas em 2024 equivalente a 0,5% do PIB, ou US$ 130 bilhões, enquanto a Casa Branca está oferecendo 0,1% do PIB. Assim, o mais provável, se houver um acordo, será algo no meio, o que implicaria algum impulso fiscal negativo justo quando a economia está desacelerando e as condições financeiras continuam restritivas.

Do lado monetário, temos a reunião do Fed em junho. A força das últimas divulgações econômicas, especialmente do mercado de trabalho, tem endurecido a retórica de alguns membros do Fed, o que tem contribuído para uma alta relevante nas taxas de juros, com a taxa do Treasury de dez anos subindo de 3,30% para 3,75%.

Ainda assim, parece que a melhor aposta é que o Fed pause o ciclo de alta de juros. Em sua mais recente fala, Jay Powell repetiu que as incertezas sobre os efeitos da recente crise bancária recomendam cautela, e que os riscos para a dinâmica da inflação estão mais equilibrados depois da forte alta do Fed funds.

Para quem acha que a crise bancária “acabou”, vale a pena levar em consideração que o segmento de pequenos bancos ainda está perdendo depósitos, e que as pesquisas sobre condições de crédito ainda apontam para um aperto generalizado. Chamou atenção a última pesquisa do Dallas Fed, que mostra que as condições de crédito na sua região hoje estão mais restritivas que na crise de 2008.

Como sempre, muito da direção do mercado – e da decisão do Fed – será pautada em parte pelos resultados dos dados de emprego de maio que serão conhecidos na sexta-feira, 2 de junho. Apesar de ter errado para baixo em suas previsões, o mercado vai entrar no dado com uma previsão ao redor de 150-180 mil novos empregos, versus 253 mil em abril.

Afinal, como fazer sentido essa bagunça? A verdade é que o choque pandêmico e a reação da política econômica ao choque foram tão intensos que estes criaram distorções que demoraram anos para serem normalizadas, e até lá o melhor é se acostumar com coisas que não fazem muito sentido mesmo e parecem ser um tanto contraditórias.

Uma maneira de ver isso é a distinção entre o atual nível das variáveis em relação à sua tendência pré-pandemia e às suas mudanças neste último ano de aperto monetário.

Pega o nível de M2 (Estoque Monetário) na economia americana, hoje em US$ 20 trilhões. Uma queda de 9% em comparação ao pico em meados de 2022, que foi de US$ 22 trilhões. Mas, calculando a tendência que tínhamos antes da pandemia, o M2 deveria hoje estar ao redor de US$18 trilhões.
Qual é o fato mais importante: a queda de US$ 22 para U$S 20 trilhões ou o fato de que o nível hoje está US$2 trilhões acima do valor que teríamos se não fosse a pandemia?

Ora, os dois são importantes! A queda do pico implica a desaceleração da atividade e os efeitos contracionistas da política monetária. Mas o fato de que ainda estamos com excesso de liquidez implica que o nível de atividade e especialmente o de consumo, já que boa parte dessa liquidez ainda está nas mãos dos consumidores, ainda têm um suporte grande, o que evita a eclosão de uma recessão.

Uma analogia: o carro está desacelerando, mas de um patamar de velocidade altíssima. Simplesmente vai demorar muito mais do que o usual para o carro parar.

Um ponto especulativo (mas que eu acho que faz sentido): não necessariamente teremos que “zerar” toda a alta pós pandemia para normalizar a inflação ou até entrar em recessão. Uma vez que há um componente comportamental em qualquer recessão, não está claro o que tem que acontecer para o consumidor nem para as empresas quebrarem o ciclo inflacionário, hoje concentrado no setor de serviços. Em tese, essa quebra pode acontecer a qualquer momento (sejamos honestos, ninguém consegue prever o timing de uma recessão.)

O ponto fundamental é que a “lógica” do processo, ou seu desfecho provável, não mudou. Tivemos a maior expansão monetária e fiscal da história. Isso gerou o maior choque inflacionário dos últimos 40 anos – o que levou, em alguns casos com bastante atraso, a um intenso aperto monetário. E esse aperto deve gerar uma recessão para retirar a praga da inflação. 

Eu não sei sobre você, mas quando eu faço o teste de Rorschach, eu vejo como inevitável desfecho uma recessão global…

Tony Volpon

Sobre o autor

Caio Mesquita

CEO da Empiricus