Day One

Um outro olhar sobre o financial deepening

É possível que você já tenha ouvido a expressão “visão 20/20”. Ela se refere a uma situação muito clara, nítida, e não raro é usada por agentes de mercado. Um exemplo: “hindsight is 20/20” (retrospectivamente, tudo é 20/20). Em outras palavras, acontecimentos do passado parecem óbvios à luz do conhecimento de hoje.

Por Lais Costa

19 nov 2021, 10:10 - atualizado em 19 nov 2021, 10:11

É possível que você já tenha ouvido a expressão “visão 20/20”. Ela se refere a uma situação muito clara, nítida, e não raro é usada por agentes de mercado. Um exemplo: “hindsight is 20/20” (retrospectivamente, tudo é 20/20). Em outras palavras, acontecimentos do passado parecem óbvios à luz do conhecimento de hoje.

A origem da expressão remonta ao ano de 1862, em uma referência à fração de Snellen, notação de medida de acuidade visual derivada do gráfico desenvolvido pelo oftalmologista holandês Herman Snellen.

O nome pode parecer estranho, mas se trata de algo muito conhecido. Se você já fez um exame de vista e precisou ler algumas linhas com letras em tamanho decrescente para o seu médico, é sobre esse quadro de letrinhas que estamos falando.

O numerador da fração de Snellen representa a distância entre o paciente e o gráfico, que nos EUA é de 20 pés (aproximadamente 6 metros), e o denominador se refere a uma das linhas de letras que o paciente deveria conseguir ler daquela distância.

Nessa lógica, caso a pessoa consiga ler uma linha de letras menores do que a linha de convenção na mesma distância, ela teria uma visão 20/15, ou seja, mais saudável do que o benchmark, enquanto uma visão 20/200 é considerada tecnicamente cegueira.

No mercado de fundos de investimento, existem algumas frações que saltam aos olhos e que nos dizem bastante sobre a possibilidade de fazermos uma leitura mais nítida do cenário econômico.

No universo de hedge funds, grosso modo, a divisão entre fundos sediados nos EUA e no restante do mundo é de 75/25. Dentre os motivos para essa razão, podemos citar baixa rigidez regulatória, segurança jurídica e incentivos tributários e fiscais no território americano.

Se colocarmos uma lupa na indústria americana entre os anos 1940 e 1950, os hedge funds podiam ser divididos entre estratégias macro e todas as demais, em uma proporção 40/60. Com o passar do tempo, o amadurecimento do mercado de capitais, a consolidação das instituições e a clara tendência de juros estruturalmente mais baixos no longo prazo — ainda que com aumentos momentâneos — levaram essa fração para algo como 8/92. A representatividade dos fundos macro foi dragada principalmente por fundos de ações.

Hoje, nos hedge funds, as estratégias relacionadas ao mercado acionário (orientadas por eventos, valor relativo, nichos, ações), quando comparadas a outras estratégias, têm uma proporção de 80/20.

Na indústria de fundos dos EUA como um todo, as estratégias de ações formam uma proporção de cerca de 60/40 em relação às demais.

A evolução do mosaico da indústria em direção ao mercado acionário é um reflexo do fenômeno que chamamos de “financial deepening”, que se refere ao desenvolvimento do mercado de capitais, capitaneado nos últimos 40 anos principalmente pelos EUA.

No Brasil, a razão 80/20 também é válida; porém, ao invés de ações, o 80 se refere a investimento em ativos de renda fixa. Para trazer a matemática um pouco mais próxima da realidade, grande parte desse numerador são investimentos em títulos públicos federais e operações compromissadas que, além de instrumentos de renda fixa, também são usados como garantia de operações de risco.

De todo modo, as ações ficam com meros 14% do patrimônio líquido dos fundos, de acordo com o relatório da Anbima.

Não por menos, a performance dos hedge funds é comparada à do mercado acionário americano, enquanto os nossos multimercados usam o CDI como benchmark.

Quando falamos sobre os multimercados (os nossos hedge funds), há uma inversão da proporção americana 8/92 de representatividade da estratégia macro. A maioria esmagadora dos multimercados são macro e uma tímida minoria é dividida entre os fundos long biased, long & short e retorno absoluto.

Por aqui, não é raro copiarmos padrões às avessas.

Copiamos monumentos de bronze em tom dourado e depreciamos o metal precioso, o mercado acionário e as instituições.

Não seria absurdo afirmar que temos um mercado míope, não fosse o fato de que, de perto, parece que vemos pior do que de longe. E como diria o ex-ministro Pedro Malan, nem mesmo o nosso passado é 20/20.

Podemos olhar todo esse imbróglio de forma otimista e sustentar o argumento de que somos muito mais novos, prematuros sob a ótica de maturidade ou temporãos sob uma perspectiva de morosidade. Estaríamos, portanto, em algum ponto do caminho do desenvolvimento, do financial deepening tropical.

Eu sei, é difícil se manter otimista em relação ao mercado acionário e ao aumento de sua representatividade em momentos como este.

Então sejamos práticos.

O que todo esse nevoeiro do mercado brasileiro deveria deixar claro é a importância de uma alocação relevante dos seus investimentos em ativos globais buscando descorrelação e diversificação em moedas fortes. O desenvolvimento do mercado de capitais também passa por essa etapa.

Por isso, a principal recomendação da série Os Melhores Fundos de Investimento é a carteira do FoF Melhores Fundos Blend, que tem a proporção de 20/80 entre fundos globais e locais, no limite do que a regulação atual permite para o público geral. Não fossem os entraves regulatórios, essa proporção seria mais próxima de 30/70 ou até 40/60, a depender da opacidade do cenário econômico.

O financial deepening também significa abrir os olhos para o mercado global.

Um abraço,

Laís

Sobre o autor

Lais Costa

Engenheira eletricista pela UTFPR com passagem pelo MIT e especialização em finanças pela Columbia University. Iniciou a carreira no mercado financeiro com foco no mercado de bonds nos EUA. Após uma experiência na Itaú Asset em NY, ela esteve por três anos no time de Global Macro Strategy da XP Inc também em NY, cobrindo mercados emergentes asiáticos e Brasil com foco em criação de ideias de investimento de renda fixa para clientes institucionais. Desde maio de 2021, Laís faz parte do time de análise da Empiricus. Por dois anos foi responsável pela alocação e seleção de fundos globais e hoje é a analista a frente das séries Super Renda Fixa e Os Melhores Fundos de Investimento.